sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Entendendo o quadrado de samba, ou: Porquê comecei a estudar harmonia - Parte 2/2

Na primeira parte do texto, dada uma tonalidade maior, foram construídos os acordes que utilizam apenas as notas desta tonalidade (ou escala). São os chamados acordes diatônicos desta escala maior.

Nesta segunda parte, aprenderemos algumas sequências padrão de acordes, e com base nelas construiremos o quadrado de samba. Como será visto, parte fundamental desta construção serão acordes de sétima dominante (acordes maiores com sétima menor). Assim como o campo harmônico, o conceito de dominância pode ser aplicado a qualquer estilo musical. As Seções 4.2 e 4.3 deste texto são particularmente importantes também no desenvolvimento da música norte-americana, o rock e da música pop.

A citação [CHEDIAK] refere-se ao "Dicionário de acordes cifrados", de Almir Chediak.

4 - Sequências harmônicas

Veremos agora o tópico de progressões de acordes. Parte fundamental do desenvolvimento do que hoje entendemos como harmonia são músicas construídas em torno de três acordes, tocados em uma determinada sequência. Músicas que usam três acordes são recorrentes no rock, pop e blues. Mesmo que já nos anos 60 já existissem bandas de rock como Beatles e Beach Boys que adicionavam acordes diferentes às suas músicas (o que faz parte do desenvolvimento do rock progressivo), progressões usando três acordes são a base fundamental para entendimento da harmonia na música popular e erudita. De fato, construiremos o quadrado de samba com base em variações desta base simples.

4.1 - Nomenclatura dos graus da escala; Cadências

Numa tonalidade, os acordes podem ser diatônicos e não diatônicos; diatônicos quando são formados por notas que pertencem à sua escala. Um acorde não diatônico tem ao menos uma nota estranha à tonalidade (escala) onde ele se encontra. Uma origem comum dos acordes não diatônicos, que serão vistos na Seção 4.2, são os chamados dominantes secundários, fundamentais para entendermos o quadrado de samba. Outras possibilidade é o acorde ser de um empréstimo modal, assunto que não veremos neste texto.

Relação dos acordes diatônicos tomando como exemplo a tonalidade de Dó maior:

 I7M  IIm7  IIIm7  IV7M  V7  VIm7  VIIm7(b5)
C7M Dm7 Em7 F7M G7 Am7 Bm7(b5)
Figura 6'. Conforme Figura 6 da primeira parte do texto:
Cifra analítica dos acordes diatônicos de uma
tonalidade maior com sétima. Acordes de Dó maior
 como exemplo.

Lembrando que os números romanos sobre os acordes indicam os graus da escala onde os mesmos são encontrados (cifras analíticas). Por praticidade, ao invés de nos referirmos à Figura 6 do primeiro texto, aqui nos referiremos sempre à Figura 6'.

Na progressão acima as funções são de:

  • Tônica (resolução) - Grau I
  • Dominante (preparação) - Grau V7
  • Subdominante (meia-resolução/suspensão) - Grau IV

Essas três funções serão suficientes para entendermos progressões (cadências) de acordes. O movimento de preparação para resolução (dominante para tônica) é chamado de cadência perfeita. Este é o motivo de acordes dominantes serem tão importantes na música.
[ Ouça um exemplo da cadência perfeita][Fonte].

4.2 - Acordes dominantes e o círculo de quintas

A função do acorde de sétima dominante é direcionar ou resolver à nota ou acorde da tônica[Fonte]. A importância deste conceito é ilustrada pela citação a seguir:

"A exigência do V7 para a resolução é, para nossos ouvidos, quase inescapavelmente irresistível. A sétima dominante é, de fato, a força central propulsiva em nossa música; É precisa e inequívoca."
— Goldman, 1965: 35a [Goldman, Richard Franco (1965), Harmony in Western Music (London: Barrie and Rockliff), pp. 34–35. ISBN 978-0-214-66680-3] (tradução livre).

Uma forma de argumentar o porquê a cadência perfeita (V7-I) é tão forte é analisarmos a condução de notas na tonalidades de Dó maior e Dó menor:
G7-> C/Cm  Intervalo
G -> C Quarta ascendente
B -> C Meio tom
D -> E/Eb Tom inteiro/Meio tom
F -> G Tom inteiro
Figura 7. Condução das notas da cadência perfeita V7-I

Particularmente importante é o movimento "B->C", da sensível (sétima) em direção à tônica, que fortalece a resolução em direção ao acorde de Dó.

O sétimo grau de uma escala maior é chamado sensível (leading-tone, em inglês), justamente pela sua importância na resolução da tônica.

Vemos na Figura 7 que a condução é sempre de intervalos pequenos (tom inteiro/meio tom) ou de quarta justa ascendente. Isso ajuda a entender o porquê tal cadência soa tão definitiva. Esta noção de continuidade na condução de acordes é um dos elementos mais importantes da harmonia. A escolha de acordes deve sempre "conduzir as vozes [notas] pelo menor caminho, obtendo-se, assim, continuidade harmônica"[p. 176, CHEDIAK].

Um motivo pelo qual o acorde V7 contém uma tensão a ser resolvida é a presença do intervalo de trítono (três tons inteiros) neste acorde. Por exemplo, no caso de Dó maior o acorde V7 é G7, de notas {G,B,D,F},  e o trítono se encontra entre as notas B e F (confira usando a Figura 4 da primeira parte do texto).

O trítono é um intervalo bastante famoso na música por suas características de tensão e dissonância (saiba mais). Existe até mesmo a história de que seu uso tenha sido proibido pela Igreja Católica na idade média, tendo sido chamado de "som do diabo", muito embora a veracidade histórica deste fato tem sido questionada (vídeo com legendas em inglês).

Uma forma comum de representar a progressão de notas (e acordes) em quintas é através do círculo de quintas:

Círculo de quintas
Figura 8. O círculo de quintas. No sentido horário há progressão em quintas, e no anti-horário progressão em quartas[Fonte].
O círculo de quintas será de extrema importância neste texto, porque permite encontrar qual o dominante de qualquer acorde, olhando o elemento à direita dele. Veja o exemplo a seguir:

Exemplo: Pela Figura 8 acima, o quinto grau da escala de F é C; Como o quinto grau de um tom maior é um acorde de sétima dominante (Tabela 6'), uma música de tom Fá maior portanto tem o acorde C7 como o quinto grau de seu campo harmônico. Assim, a sequência V7-I em Fá maior é dada por C7-F.

Dominantes secundários

A ideia de que um acorde dominante tem a função de preparar o próximo acorde (no caso a tônica), V7->I  (G7->C em Dó maior), pode ser estendida. Neste caso, o acorde V7 é chamado dominante primário, chamado assim pois é o caso onde o recurso de tensão e resolução (neste caso, na tônica) causa o maior impacto musicalmente.

A resolução de um acorde preparatório no decorrer de uma progressão harmônica é denominada resolução passageira, com exceção do I grau, neste caso teremos uma resolução final.

Contudo, existem outras formas de causar efeito musical similar, preparando o ouvinte para acordes do campo harmônico que não sejam a tônica: São os chamados dominantes secundários. O objetivo deste recurso é dar dinâmica e movimento ao trecho musical introduzindo, de forma controlada, acordes não diatônicos numa sequência. Existem ainda os dominantes auxiliares, que preparam acordes não diatônicos. Não veremos estes últimos neste texto.

Notação: Denota-se V7/x o dominante secundário do grau x de uma sequência. Por exemplo, o acorde que prepara o grau IV do campo harmônico é denotado V7/IV.

Vejamos agora um exemplo:

Exemplo: Seja a sequência em Dó maior a seguir, que contém o acorde não diatônico D7 ao invés de Dm7:

C-D7-G7-C

Note que D7 é um acorde não diatônico, que prepara o Sol maior. Conforme o círculo de quintas (Figura 8), D é o quinto grau da escala de G,  portanto, o acorde D7 de fato é o dominante de Sol maior. Logo, nesta sequência de Dó maior, D7 tem a função do dominante secundário V7/V (lê-se "cinco do cinco"), portanto esta sequência pode ser denotada "I-V7/V-V7-I" . O caso V7/V é comum, chamado de "dominante do dominante".

No final do texto são feitos alguns comentários de como podemos adicionar notas a um acorde dominante para tornar a condução ao próximo acorde mais interessante musicalmente.

Comentário: O porquê de um acorde de sétima dominante prepara acordes maiores e menores (por exemplo: G7 prepara C e Cm, A7 prepara D e Dm, etc.) envolve a construção do campo harmônico da escala menor (especificamente, da escala menor harmônica, conforme página 127 do livro do Chediak). Espero que o argumento da Figura 7 seja suficiente ao menos para prosseguir com o texto.

O exemplo a seguir mostra como podemos analisar músicas apenas com o conhecimento dos acordes diatônicos da tonalidade maior e dominantes secundários, sem pensarmos no quadrado de samba ou outra sequência específica.

Exemplo: "Verdade", Zeca Pagodinho (Fá maior)[Fonte].
Note (Tabela 6') que neste trecho todos os acordes são diatônicos, a não ser C7 e F7, respectivamente dominantes primários e secundários (confira pelo círculo de quintas, Figura 8).
F(I)            Gm(IIm) Am(IIIm) Gm(IIm)
Descobri que te amo demais
F(I)          Gm(IIm)  Am(IIIm) F7(V7/IV)
Descobri em você minha paz
Bb(IV)       C7(V7)    F(I) Dm(VIm)
Descobri sem querer a vida
   Gm(IIm) C7(V7)
Verdade

F(I)            Gm(IIm) Am(IIIm) Gm(IIm)
Descobri que te amo demais (...)

4.3 - Progressões de três acordes (sequência I-IV-V)

Quando se usa apenas três acordes em uma música, tipicamente, se usa a tônica, a subdominante e a dominante (graus da escala I, IV e V), que no tom de Dó maior seriam os acordes de C, F e G. Pode-se usar sempre o acorde dominante V7 (G7)  para maior tensão.

Uma justificativa interessante do usar os acordes I, IV e V é olharmos o caso de dó maior, as tríades (tônica, terça e quinta) dos acordes de Dó, Fá e Sol maiores na primeira parte do texto (conforme  primeira parte do texto):

Acorde C  Dm  F  G
Tônica C D F G
Terça E F A B
Quinta G A C D
Grau I IIm IV V
Tabela 1'. Trecho da Tabela 1, com as notas de alguns
acordes diatônicos da tonalidade de Dó maior.

Como as tríades da sequência de acordes maiores C-F-G (I-IV-V) contém todas as notas {C,D,E,F,G,A,B} da escala de dó maior (confira!), esta sequência é uma forma simples de cobrirmos as melodias que não utilizam notas externas à escala da música.

Quase todas as músicas de rock dos anos 50 e 60, country e blues e são canções de três acordes. Por exemplo, a sequência I-IV-V origina progressões como as seguintes:

#   Progressão      
1   I - IV- V - I,  [ Ouça] [Fonte]
2   I - IV- V - V,
3   I - I - IV- V.
Tabela 5. Exemplos de progressões de três acordes
(sequência I-IV-V).

Na Tabela 5 acima temos quatro acordes nas progressões pelo fato de termos, em geral, músicas em quatro tempos, ou seja, as músicas são 4/4, com quatro tempos por compasso.

As progressões da Tabela 5 estão entre as progressões de três acordes mais frequentes, e apesar de simples, são plenamente capazes de criar os efeitos de tensão e resolução presentes numa canção. Um exemplo: Frequentemente uma frase de abertura do tipo I-IV-V-V (progressão 2 da Tabela 5), que cria a tensão de uma dominante que não foi resolvida, pode ser "respondida" por uma progressão que retorne à tônica, originando uma estrutura musical de dois compassos como a seguinte:

   I-IV-V-V
   I-IV-V-I

Uma exceção notável à cadência perfeita V-I é presente nos blues de 12 compassos:

I7 - I7 - I7 - I7
IV7- IV7- I7 - I7
V7 - V7 - I7 - I7
onde temos a cadência IV-I, chamada cadência plagal, da subdominante para a tônica.

Outra importante característica do blues é a sucessão de acordes de sétima dominante sem resolução, como mostra a sequência acima. De fato, a exploração das tensões causadas pelas sequências de intervalos de trítonos dos acordes dominantes é parte instrínceca da sonoridade deste estilo musical [Saiba mais a partir de 6:42 deste vídeo].
Veremos a seguir como criar variações das progressões de três acordes que vimos aqui, encontrando outras progressões padrão e, por fim, falar do quadrado de samba.

4.4 - Variações da sequência I-I-IV-V.

Como já foi dito aqui, muito embora algo simples como uma sequência de três acordes muitas vezes não represente toda a estrutura e complexidade harmônica na música (ainda mais na música brasileira), podemos, a partir de uma progressão de apenas três acordes, ir em direção à maior variedade de acordes e riqueza harmônica.

Criar variações de uma progressão de três acordes basicamente significa substituir algum acorde da sequência I-IV-V por algum outro acorde. Por exemplo, podemos partir da progressão em Dó maior C-C-F-G (I-I-IV-V, Tabela 5)  e obtermos a progressão C-C-Dm-G. Ou seja, substituímos o grau IV do campo harmônico maior (Tabela 4) pelo II, obtendo a variação I-I-II-V. Na verdade, esta progressão é uma das variações mais comuns de uma sequência de três acordes; Ela será fundamental para a construção do quadrado de samba.

Vejamos uma forma de visualizar a substituição do quarto grau pelo segundo. Voltando à Tabela 1', temos que a sequência C-Dm-G (I-IIm-V), assim como a sequência C-F-G (I-IV-V), também contém todas as notas da escala de Dó maior. Portanto, a sequência I-IIm-V também é uma forma de dar suporte adequado a melodias de tons maiores. A substituição do grau IV pelo IIm é de tamanha importância na música brasileira que recebe o nome de II cadencial.

Exemplo do II cadencial: "Casa de Bamba", Martinho da Vila (I-IIm-V7-I em Sol maior)[Fonte]:

G                            Am
Na minha casa todo mundo é bamba
            D7               G
Todo mundo bebe todo mundo samba (...)
O argumento que justificou o II cadencial poder ser usado para entendermos e visualizarmos outras substituições comuns nas sequências harmônicas. São elas:
Função harmônica  Grau   Graus substitutos 
Tônica             I        III e VI
Dominante          V        VII
Subdominante       IV       II            
Tabela 6. Funções harmônicas e respectivos graus substitutos.

A Tabela 6 acima deve ser memorizada. Uma forma de entendermos melhor os graus substitutos é recorrermos novamente à Tabela 1', como fizemos com o II cadencial. Ao fazer isso (faça!), descobre-se que, com exceção da substituição IV->I (onde há apenas uma nota em comum nas tríades de C e F), existem duas notas em comum entre as tríades substituídas da Tabela 6.

Podemos usar as regras da Tabela 6 para alterar as progressões da Tabela 5. Algumas possibilidades estão listadas na tabela abaixo:

# Variação de I-I-IV-V  Alteração                              
1 I--I--IIm-V           IV->IIm (II cadencial)
2 I-VIm-IV--V           Grau VIm prepara a subdominante 
3 I-VIm-IIm-V           Combinação das duas acima 
Tabela 7. Algumas variações da sequência I-I-IV-V. 
          Substituições de acordo com a Tabela 6.
Curiosidade: Este link contém uma compilação da ocorrência das sequências 2 e 3 da Tabela 7 na música norte-americana. Ela é chamada "50's progression".

5 - O quadrado de samba

A primeira sequência de samba que se aprende no violão ou cavaquinho é o quadrado maior de samba, dado em algumas tonalidades maiores a seguir:

I     C    D    E    F    G    A    B  
VI7   A7   B7   C#7  D7   E7   F#7  G#7
IIm   Dm   Em   F#m  Gm   Am   Bm   C#m
V7    G7   A7   B7   C7   D7   E7   F#7
Tabela 8. Quadrado de samba, I-VI7-IIm-V7, em algumas 
          tonalidades maiores.
Pela Tabela 6', temos que o acorde VI7 do quadrado de samba é não diatônico. Note que se trocássemos VI7 pelo acorde diatônico VIm, teríamos a sequência 3 da Tabela 7. Este acorde não diatônico é justamente o que dá característica de samba à sequência, e entender o porquê de ele fazer parte do quadrado de samba é o ponto central deste texto. Vejamos alguns exemplos:
Exemplo: "Canta, canta minha gente" - Martinho da Vila (quadrado em Lá maior)[Fonte]
A
Canta, canta minha gente
            F#7       Bm
Deixa a tristeza pra lá
                     E7
Canta forte, canta alto
                     A
Que a vida vai melhorar (...)
O conhecimento dos acordes do quadrado de samba é útil mesmo quando não está na sequência I-VI7-IIm-V7. O exemplo a seguir usa os acordes do quadrado de Dó, mas não segue a sequência esperada. Perceba  porém que ela sempre respeita o uso de dominantes primários (G7-C) e secundários (A7-Dm).
Exemplo: "Argumento" - Paulinho da Viola (Dó maior)[Fonte]
      C        G7          C
Tá legal, eu aceito o argumento
                   A7             Dm  A7 Dm
Mas não me altere o samba tanto assim
                G7            C          A7
Olha que a rapaziada está sentindo a falta
         Dm             G7                  C 
De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim

G7 C G7 C Tá legal! Tá legal, eu aceito o argumento (...)

Nas Seções 5.1 e 5.2 a seguir serão dadas duas explicações do porquê a sequência do quadrado de samba faz sentido: A Seção 5.1 utiliza as notas dos acordes, e a Seção 5.2 utiliza acordes dominantes. As duas são importantes, mas a que utiliza dominantes permite compreender uma gama maior de situações, inclusive em outros estilos musicais.

5.1 - Explicação a partir das notas

Começaremos com uma definição importante:

Acorde alterado é quando ele contém ao menos uma nota não pertencente à escala de origem.

Uma citação interessante envolvendo acordes alterados é a seguir:

"O objeto de tais notas externas é: aumentar e enriquecer a escala, confirmar a tendência melódica de certas notas...; converter notas inativas em ativas [sensíveis]...; e de relacionar acordes." (tradução livre) [Fonte]

Vejamos o quadrado em Dó maior no violão e no cavaquinho:

    Acorde     C    A7    Dm   G7   -> C  A7 ...
Cifra e 0 0 1 1 Corda B 1(C) 2(C#) 3(D) 0(B) -> C C# ...
G 0 0   2 0
D 2   2   0 0 A 3 0   X 2  E X X   X 3
Figura 9a. Quadrado de samba de Dó maior no violão.

Acorde C A7 Dm G7 -> C A7 ...
Cifra d 2 2 3 5 Corda B 1(C) 2(C#) 3(D) 3(D) -> C C# ...
G 0 0   2 4
D 2   2   3 3 Figura 9b. Quadrado de samba de Dó maior no cavaquinho.

Já sabemos que A7 é um acorde não diatônico. Ele também é alterado, pois a nota C#, a terça deste acorde , está fora da escala de Dó maior. A troca do acorde diatônico Am7 pelo não diatônico A7 portanto é a troca da nota C pela C#. Vejamos como esta troca, conforme a citação acima, "converte uma nota inativa numa ativa".

Se observarmos as Figuras 9a e 9b acima, veremos que há um desenho em semitom ascendente na corda Si, {C-C#-D}, que usa exatamente a nota C#. Na verdade C#, nota estranha à tonalidade de Dó, é a sensível de Ré, além de relacionar os acordes diatônicos Dó maior e Ré menor (conforme a citação acima, um dos objetivos de notas externas é relacionar acordes). Tudo isso torna o quadrado de samba particularmente agradável e interessante aos ouvidos. Além disso, a sequência respeita a "regra de continuidade harmônica" da Seção 4.2.

5.2 - Explicação usando Dominantes secundários

Pensando na sequência do quadrado de samba, I-VI7-IIm-V7, podemos agora entendê-lo usando o conceito de  dominantes secundários. Como já vimos, o grau VI7 é não diatônico em uma tonalidade maior e este acorde precede o segundo grau IIm.

No caso de Dó maior, o quadrado fica C-A7-Dm-G7. Portanto, procuramos se A7 é dominante de Dm7. Veja pelo círculo de quintas (Figura 8) que a nota A é o quinto grau da escala de Ré, portanto A7 é o acorde dominante dos acordes de Ré (maior ou menor).

Resumindo, o quadrado de samba tem dois acordes dominantes: Seu segundo acorde (dominante secundário do II cadencial) e o quarto (dominante primário).

Dessa forma, concluímos que o quadrado de samba (I-VI7-IIm-V7) pode ser reescrito com a seguinte cifra analítica:
I-V7/IIm-IIm-V7
Sobre notação: O livro do Chediak denota qualquer dominante (primário, secundário ou auxiliar) como V7, dessa forma o quadrado de samba seria denotado como "I-V7-IIm-V7". Esta notação pode ser confusa numa primeira leitura, muito embora faça sentido: Como quem determina o tipo do dominante é o acorde seguinte, será um dominante primário, secundário e auxiliar se ele preparar, respectivamente, a tônica, um acorde diatônico que não a tônica e um acorde não diatônico.

5.3 - A importância do conceito de dominância na música

O conceito de acordes dominantes numa sequência é de extrema importância na música em geral, não apenas em samba. Uma regra geral é:

Sempre que ocorrer um acorde com sétima dominante, olhe o acorde que vem depois dele.

Esta regra permite visualizar uma maior lógica nas sequências de acordes, seja qual for o estilo musical. Isso explica a tamanha importância do círculo de quintas (Figura 8) como ferramenta prática na harmonia.

5.4 - Conclusão e sobre a Seção 5.5

A ideia deste texto é fornecer instrumentos para que se possa compreender uma sequência de um ritmo particular, o quadrado de samba. Posso dizer que um dos motivos principais que me fizeram estudar harmonia foi minha própria dificuldade em decorar cifras, e os conteúdos deste texto de fato me ajudaram, pelo fato de memorizar os padrões ao invés de dezenas de músicas.

Pensando na música de forma geral, este texto talvez tenha duas contribuições principais: Introduzir o campo harmônico maior com sétima (Figura 6') e familiarizar o leitor com o conceito de dominantes secundários. Estes dois recursos permitirão a(o) leitor(a) compreender uma larga gama de músicas cifradas.

A Seção 5.5 a seguir esclarece um ponto um pouco mais avançado: Uma variação comum do quadrado de samba que utiliza acordes diminutos, além de explicar o porquê de encontrarmos no samba acordes dominantes como "B7(9b)".

5.5: Variação do quadrado de samba: Dominantes alterados e acordes diminutos

Adicionando notas a acordes dominantes

Já foi dito aqui que o domintante V7 prepara tanto a tônica maior I quanto a menor Im, mas muitas vezes têm-se o objetivo de tornar mais óbvio que se quer conduzir a um acorde maior (ou menor). Uma forma comum de fazer isso é adicionar ao acorde dominante notas do próximo acorde, criando acordes dominantes alterados.

São comuns no samba acordes com notas além da tríade e sétima, em especial acordes dominantes como G7(9) ou G7(b9).

Quando nos referimos à "nona" de uma escala por exemplo, referimo-nos ao segundo grau uma oitava acima. Uma regra prática para descobrir a nota de origem, é diminuir o número 7 do grau desejado (no caso da nona, 9-7=2). Por exemplo, o 13o grau de uma escala corresponde ao sexto grau (13-7=6) da escala, uma oitava acima.

Especificamente no caso de acordes dominantes, os dois casos mais comuns é adicionar a nona quando se prepara acordes maiores (G7(9)->C), e a nona menor quando se prepara acordes menores (G7(b9)->Cm). Como já foi dito, tais notas são adicionadas para aumentar a força da cadência (condução) ao próximo acorde, pois adiciona-se notas do acorde que preparam.

No caso de quando se conduz a Dó maior, temos que a nona adicionada à G7(9) é A, sexto grau da escala de Dó maior, e no caso Dó menor, a nona bemol do acorde G7(b9) é a nota Ab, que por sua vez é o sexto grau da escala de Dó menor (a escala de Dó menor natural é {C,D,Eb,F,G,Ab,Bb,C}, saiba mais). Por este motivo sempre podemos, e no livro do Chediak inclusive recomenda-se, subtituir:

V7-I   por  V7(9)-I
V7-Im por V7(9b)-I

Portanto, pode-se sempre tocar o quadrado de samba como I-IV7(9b)-IIm-V7. No Exemplo do quadrado em Lá maior que já vimos, A-F#7-Bm-E7, poderíamos alternativamente tocar A-F#7(9b)-Bm-E7.

Exemplo: "Toalha da Saudade", Batatinha (Ré maior).[Fonte] Dominante secundário alterado B7(b9)->Em.
D7M    A7        D7M  A7
 Tenho ainda guardada
        F#m7   B7(b9)          Em       B7(b9)
 como lembrança do carnaval que passou
 Em             A7                    A    A7
 Uma toalha bordada que na escola de samba
                         A7
 um lindo rosto enxugou (Eu tenho) (..)

Cifras usuais para estes dominantes são[p.90-91 CHEDIAK]:

C7(9): X3233X  C7(9b): X3232X
C7(9): 8X875X  C7(9b): 8786XX

Outra nota comumente adicionada (inclusive junto com a 9a) aos dominantes é a 13a quando conduzindo a um acorde maior, e 13a menor quando conduzindo a um acorde menor[p. 91 CHEDIAK]. Adicionar esta nota faz o acorde dominante incluir a terça do acorde que prepara.

Acordes diminutos e variação do quadrado de samba

Construiremos agora uma variação do quadrado de samba, onde precisaremos compreender o conceito de equivalência de acordes. Significa basicamente que podemos trocar dois acordes que têm as mesmas notas, com o acorde trocado (essa é a parte importante) mantendo a função harmônica do acorde substituído.

Usando acordes equivalentes, mostraremos uma das origens de acordes diminutos (no samba e na música em geral). Lembrando que um acorde diminuto é um acorde de terça menor, quinta diminuta e sétima diminuta. Na seção acima falamos sobre dominantes com nona bemol (G7(b7) no caso da tonalidade de Dó menor) preparam um acorde menor. Mas vejamos as notas deste acorde, e compará-las com um diminuto específico:

G7(b9): G B D F Ab
    B°: B D F Ab
Figura 10. Equivalência entre os graus V7(9b) e VII°.   Exemplo da tonalidade de Dó.

Note também que os dois acordes contém o mesmo trítono (três tons inteiros entre as notas B e F), portanto contém a mesma fonte de tensão que caracteriza um acorde dominante. Então podemos fazer a substituição do grau V7(9b) pelo VII° numa sequência, e o acorde diminuto terá o efeito de dominante. Na verdade, este acorde por vezes é ser chamado de dominante diminuto.

Isto é, pode-se trocar livremente:
  • Dominante com nona menor (uma quarta abaixo do acorde menor que prepara), por
  • Diminuto (um semitom abaixo do acorde menor que prepara)
Um exemplo: Como (pelo círculo de quintas) F#7(9b) é acorde dominante de Bm, podemos substituí-lo por Bbo, que está um semitom abaixo de Bm. Esta substituição origina uma variação do quadrado de samba. Isto é, o quadrado em Lá maior (A-F#7-Bm-E7) pode ser tocado como A-Bb°-Bm-E7, de cifra analítica I-IIb°-IIm-V7. O exemplo a seguir usa esta variação:
Exemplo: "Quem é do mar não enjoa", Martinho da Vila. Variação do quadrado de samba em Lá maior.[Fonte]
A                       Bb°    Bm7
Quem é do mar não enjoa, não enjoa
                   E7  A
Chuva fininha é garoa, é garoa (...)
Um forte motivo do porquê esta variação do quadrado é popular é a progressão em semitom ascendente das tônicas, I-IIb-II (notas {A, Bb, B} no exemplo acima), logo uma sequência com o menor caminho possível entre os acordes, seguindo portanto a regra de continuidade harmônica já citada na Seção 4.2. Na tabela a seguir temos esta variação em algumas tonalidades:
I     C    D    E    F    G    A    B  
IIb°  Db°  Eb°  F°   Gb°  Ab°  Bb°  C°
IIm   Dm   Em   F#m  Gm   Am   Bm   C#m
V7    G7   A7   B7   C7   D7   E    F#7
Tabela 8'. Variação do quadrado de samba (Tabela 8), 
I-IIb°-IIm-V7, em algumas tonalidades maiores.

Agradecimentos e comentário

Agradeço à Julião Seu Rovigas, Jo Camilo e Guilherme (o primo que não é parente) pelas revisões e sugestões.

Comentário biográfico:
As explicações das Seções 5.1 e 5.2 surgiram de situações e pessoas distintas: Anos atrás eu conversava com um gaitista profissional que organizava apresentações ("canjas") de jazz em Campinas, e eu perguntei a ele justamente o porquê do acorde VI7 no quadrado de samba, e ele me explicou utilizando as notas do acorde, que é basicamente o que faço na Seção 5.1.

Quanto à explicação da Seção 5.2: Em 2018 eu estava ajudando a organizar o Festival de Inverno da UFOP em João Monlevade/MG (cidade onde sou professor), e pude conhecer Celso Moreira, músico mineiro que ministrou no festival um workshop sobre harmonia. Nesta ocasião ele falava sobre como pode-se "emprestar" acordes de outra escala que não a principal ("esse é o cinco do dois!"), que é a ideia básica dos dominantes secundários.

5 comentários:

  1. MUITO bom!!! Parabéns pela análise!

    Se posso apenas fazer uma observação - na Tabela 1', consta como quinta do Dm a nota B, quando deveria ser A. (está correto na Tabela 1 de origem).

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  2. Obrigado pela correção, meu caro! Abraço!

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  3. Fantástico este material! É difícil encontrar livros de teoria musical, ainda mais que falem desses assuntos.

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  4. Parabéns pelo conteúdo, virou minha fonte de estudo principal

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